terça-feira, 1 de maio de 2012

No man is an island ou a estranha forma de vida de um guarda redes

No man is an island, ou, traduzindo para português, "Nenhum homem é uma ilha", é uma conhecida frase do poeta inglês John Donne, cujo significado procura ilustrar que o homem não é feito para viver sozinho, isolado da restante comunidade. Porém, o futebol nem sempre segue os predicados da vida dita "normal", e em particular, uma posição em especial contraria toda essa linha de pensamento filosófico: o guarda redes.

Ser guarda redes é a apologia da solidão, um acto de rebeldia, é ser diferente dos outros. No seu reino - a grande área - ele é rei e senhor, sendo o último bastião do seu exército, onde só se lembram dele quando tudo o resto já caiu. Durante o resto do jogo, o guarda redes é apenas um mero espectador, um espectro que parece deslocado do jogo. Por isso, pergunto-me várias vezes o que se passará na cabeça de um guarda redes durante uma partida: no que pensará Victor Valdés quando passa cerca de 80 minutos inactivo enquanto o seu Barça aborrece e cilindra (por esta ordem) os adversários com o seu tiki taka?

No entanto, existe apenas uma situação na qual o guarda redes pode ter mais notoriedade do que um virtuoso do meio campo ou de um bomber de grande área: o penalty. No fundo, trata-se de uma situação "carne para canhão" onde o guarda redes nada tem a perder. Muito pelo contrário, só tem a ganhar. Se for golo, o avançado não fez mais que a sua obrigação: afinal de contas, estamos a falar de um remate sem oposição a 11 metros da baliza. Porém, se o guarda redes defender, passa automaticamente a ser o herói e a ser visto com outros olhos. Vida ingrata, esta. Ingrata para uns, mas grata para outros, que devido ao facto de terem brilhado na defesa de grandes penalidades, viram reconhecido internacionalmente o seu brilhantismo, quando se não se tivessem evidenciado nessa particularidade, nunca seriam vistos como mais do que um mero guarda redes mediano: falo, por exemplo, do nosso Ricardo ou do argentino Sergio Goycochea, figura do Mundial '90.

Relativamente ao português, a história é bem conhecida de todos: é o guarda redes que defendeu sem luvas o penalty de Vassell, no Euro 2004 (e logo se seguida marcou ele próprio o penalty da vitória da Selecção das Quinas frente aos ingleses), e que, no Mundial 2006, voltou a fazer chorar a nação inglesa ao defender três penalties na mesma série de desempate, após um empate a zero no tempo regulamentar, em plenos quartos de final de um Campeonato do Mundo. Caso estes episódios nunca tivessem acontecido, provavelmente Ricardo nunca teria o empolamento e a notoriedade que teve, nunca ultrapassando a imagem de um guarda redes com relativo potencial, capaz do melhor e do pior no mesmo jogo.

 Ricardo, no momento em que defende o penalty de Darius Vassell, no Euro 2004

Por sua vez, a história de Sergio Goycochea acaba por ser mais típica de novela sul americana. Convocado para o Mundial '90, em Itália, como suplente do mítico Nery Pumpido, o guarda redes foi para o torneio convencido que nunca iria sair do banco de suplentes. Porém, no segundo jogo da fase de grupos, frente à União Soviética, Nery Pumpido lesiona-se gravemente aos 11 minutos, dando lugar ao seu suplente, precisamente Sergio Goycochea, que viria a ser determinante nos quartos de final frente à Jugoslávia de Ivkovic, ao defender dois penalties no desempate por grandes penalidades (3-2 p., após 0-0 nos 90 minutos), bem como nas meias finais frente à Itália (4-3 p. após empate a um no tempo regulamentar), defendendo os remates da marca de 11 metros de Roberto Donadoni e de Aldo Serena. Na grande final, frente à Alemanha, foi no entanto incapaz de defender o penalty de Andreas Brehme, aos 83 minutos de jogo, que viria a atribuir o ceptro de campeões do mundo aos alemães.

 Sergio Goycochea

Sem estes episódios, Ricardo e Goyco nunca teriam saído da sombra do quase anonimato. Seriam apenas mais um entre milhares de guarda redes internacionais medianos. Ser guarda redes, uma estranha forma de vida.

6 comentários:

Luís disse...

Um engraçado também era aquele alemão do estugarda, Eike Immel, foi o redes mais caro do futebol alemão, titular da selecção durante uns anos e depois acaba a carreira aos 28 porque acusa a pressão do colega Bodo Ilgner e torna-se no guarda redes com mais golos sofridos na Bundesliga. Quando era miúdo até tinha um boneco dele e tudo lol

Miguel Tavares de Pinho disse...

A componente psicológica também define - em grande parte! - o sucesso ou o insucesso de um jogador. É o caso do Immel e do Asamoah Gyan, por exemplo, já focado num dos primeiros posts deste blog. Acho que um dia tenho de explorar essa vertente para um texto...

JP disse...

Um papel muitas vezes secundarizado, mas o Guarda Redes é mesmo um dos protagonistas, podendo tomar o palco principal em certos momentos.

Uma boa referência para o Ivkovic, que tinha a célebre rivalidade com "D10S" Maradona no que toca a penalties. O futebol é pródigo em fenómenos e histórias. :)

Miguel Tavares de Pinho disse...

A propósito desse despique entre o Ivkovic e o Maradona, li no livro de D10S que num dado jogo entre as duas selecções, o Ivkovic apostou com o Maradona 1000 dólares (se não foram 1000, foi um valor igualmente alto) em como defendia o penalty. E não é que defendeu mesmo?...

JP disse...

Segundo sei, o Ivkovic defendeu-lhe dois penalties: o primeiro foi quando jogava pelo Sporting, em jogo com o Nápoles em 1989 para a Taça UEFA.

No desempate da eliminatória, a coisa estava a correr mal para o Sporting, e era o Maradona a marcar o penalty seguinte. Se marcasse, eliminava o Sporting.

O Ivokovic dirigiu-se a ele e apostou 100 dólares em como defendia o penalty. O Maradona disse que sim e... o Ivkovic defendeu. No resto do desempate o Nápoles ganhou e passou, mas no fim do jogo o Maradona foi entregar ao Ivkovic a camisola e os 100 dólares.

Depois disto foi num Mundial (não sei qual), em que o Maradona foi chamado a marcar um penalty. O Ivkovic quis apostar com ele outra vez, mas diz-se que o Maradona não tirava os olhos da bola e nem quis conversas. O Ivkovic ainda o provocou e disse algo como "eu sei que vais marcar o penalty para o mesmo lado". Certo é que o Maradona marcou para o outro lado e... o Ivkovic defendeu outra vez.

Aqui, como na Taça UEFA, o Ivkovic perdeu o jogo e a eliminatória, mas deve ser o único gajo no mundo que se pode gabar de ter defendido dois penalties do Maradona.

Luís disse...

Bem explicado. É essa a ideia que também tenho Zica!

A componente psicológica é tudo, o Mou disse-o categoricamente há uns anos. Se me lembrar de onde vi ainda publico aqui ;)