No man is an island, ou, traduzindo para português, "Nenhum homem é uma ilha", é uma conhecida frase do poeta inglês John Donne, cujo significado procura ilustrar que o homem não é feito para viver sozinho, isolado da restante comunidade. Porém, o futebol nem sempre segue os predicados da vida dita "normal", e em particular, uma posição em especial contraria toda essa linha de pensamento filosófico: o guarda redes.
Ser guarda redes é a apologia da solidão, um acto de rebeldia, é ser diferente dos outros. No seu reino - a grande área - ele é rei e senhor, sendo o último bastião do seu exército, onde só se lembram dele quando tudo o resto já caiu. Durante o resto do jogo, o guarda redes é apenas um mero espectador, um espectro que parece deslocado do jogo. Por isso, pergunto-me várias vezes o que se passará na cabeça de um guarda redes durante uma partida: no que pensará Victor Valdés quando passa cerca de 80 minutos inactivo enquanto o seu Barça aborrece e cilindra (por esta ordem) os adversários com o seu tiki taka?
No entanto, existe apenas uma situação na qual o guarda redes pode ter mais notoriedade do que um virtuoso do meio campo ou de um bomber de grande área: o penalty. No fundo, trata-se de uma situação "carne para canhão" onde o guarda redes nada tem a perder. Muito pelo contrário, só tem a ganhar. Se for golo, o avançado não fez mais que a sua obrigação: afinal de contas, estamos a falar de um remate sem oposição a 11 metros da baliza. Porém, se o guarda redes defender, passa automaticamente a ser o herói e a ser visto com outros olhos. Vida ingrata, esta. Ingrata para uns, mas grata para outros, que devido ao facto de terem brilhado na defesa de grandes penalidades, viram reconhecido internacionalmente o seu brilhantismo, quando se não se tivessem evidenciado nessa particularidade, nunca seriam vistos como mais do que um mero guarda redes mediano: falo, por exemplo, do nosso Ricardo ou do argentino Sergio Goycochea, figura do Mundial '90.
Relativamente ao português, a história é bem conhecida de todos: é o guarda redes que defendeu sem luvas o penalty de Vassell, no Euro 2004 (e logo se seguida marcou ele próprio o penalty da vitória da Selecção das Quinas frente aos ingleses), e que, no Mundial 2006, voltou a fazer chorar a nação inglesa ao defender três penalties na mesma série de desempate, após um empate a zero no tempo regulamentar, em plenos quartos de final de um Campeonato do Mundo. Caso estes episódios nunca tivessem acontecido, provavelmente Ricardo nunca teria o empolamento e a notoriedade que teve, nunca ultrapassando a imagem de um guarda redes com relativo potencial, capaz do melhor e do pior no mesmo jogo.
Ricardo, no momento em que defende o penalty de Darius Vassell, no Euro 2004
Por sua vez, a história de Sergio Goycochea acaba por ser mais típica de novela sul americana. Convocado para o Mundial '90, em Itália, como suplente do mítico Nery Pumpido, o guarda redes foi para o torneio convencido que nunca iria sair do banco de suplentes. Porém, no segundo jogo da fase de grupos, frente à União Soviética, Nery Pumpido lesiona-se gravemente aos 11 minutos, dando lugar ao seu suplente, precisamente Sergio Goycochea, que viria a ser determinante nos quartos de final frente à Jugoslávia de Ivkovic, ao defender dois penalties no desempate por grandes penalidades (3-2 p., após 0-0 nos 90 minutos), bem como nas meias finais frente à Itália (4-3 p. após empate a um no tempo regulamentar), defendendo os remates da marca de 11 metros de Roberto Donadoni e de Aldo Serena. Na grande final, frente à Alemanha, foi no entanto incapaz de defender o penalty de Andreas Brehme, aos 83 minutos de jogo, que viria a atribuir o ceptro de campeões do mundo aos alemães.
Sergio Goycochea
Sem estes episódios, Ricardo e Goyco nunca teriam saído da sombra do quase anonimato. Seriam apenas mais um entre milhares de guarda redes internacionais medianos. Ser guarda redes, uma estranha forma de vida.